____TALVEZ______
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Talvez tenhas os olhos
mais lindos deste mundo
e neles o olhar
mais quente e mais suave
talvez tuas olheiras sejam trigo
ceifado não por beijos
mas por curso de lágrimas
choradas longamente
na tua solidão
talvez tenhas tingido
a irís de castanho
e faças nas púpilas
teus recortes de amor
talvez sejas poema
Ou sombra ou firmamento
rasto de divindade
ou ânsia de viver
talvez sejas a sílaba
o fruto o alimento
ou pedaço de estrêla
a solidificar.
na tua face há luz
onde levita breve
a esteira do encanto
que me êxtasia e mói
talvez tenhas os lábios
mais sedosos que há
em todo o universo
partículas dum sol
da primeira explosão
talvez sejas apenas
alguma aparição
tão tranquila e tão doce
que se mede no peito
a distância entre nós
tu que vieste tarde
pelos caminhos incertos
do frio e do suão
tens os olhos mais lindos
deste mundo
a sêda mais macia
nos teus beijos
a luz até
que me extasia
talvez tenhas roubado
para sempre
esta outra luz que tens
no meu olhar.
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________SUBIDA______
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Pela rua da Misericórdia sobem eléctricos
onde povo apinhado se alinha
vindos do rio são velhos amarelos
cruzando por ministros de cara gorda
na porta do tavares
há um café à esquerda
de quem sobe de pouca gente
com portas de madeira
onde se senta uma mulher já feita
com os cabelos negros sobre os ombros
já fez serviço dum administrador
e vive hoje da melancólica grandeza
do tempo em que ganhou o campeonato
conservando no quarto uma fotografia
em S. Pedro de Alcântara de mini saia
enquanto os eléctricos sobem por ali
e um sujeito de fraque abotoado
abre a porta a um tipo de gravata
tudo gente do estado mesmo o automóvel...
representantes do povo
que arrasta o seu transporte
pelos fios dos carris nos bancos de palhinha
não muito longe do Carmo
do outro lado recorda Abril da mudança
num dia que se enganou
são ruínas do convento como pregos
espetados nas fardas da esperança
incomodas ideias de polainas no folclore
de grandola vila morena
recolhidas à pressa na parada
na ferrugem do e na missão cumprida
por isso sobem eléctricos do rio belos
e amarelos e apinhados de gente
que paga bem a liberdade adiada
cravos que o sangue não derramou.
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PAI
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Aguardas o destino inseguro
sentado na porta da existência
escutando o ruído da estrada
absurda sucata do tempo
como aquele velho nash
verde sonho distância
separado do pessegueiro bravo
pelo odor do óleo e do bolor
aguardas a nossa fogueira de espaços
mas nada posso fazer por ti
amigo dos meus abraços
vou comprar-te umas botas
aquecer o teu fraco coração
agradecer-te a passagem
procurar um adeus até amanhã...
enquanto olhas para mim
apenas posso ser
continuação...
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________MORRER_________
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Tenho um revólver na mão
mas não vou disparar assim tão cedo
havia de matar-me hoje por ser domingo ?
o chumbo abraçaria o telefone
iria procurar o coração
alojar-se num quarto de três estrelas
e adormecer na dúvida prevista.
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Por ser domingo dormi até mais tarde
e não houve calor não houve combustão
nas franjas do suicídio combinado
premeditei demais as calorias
fiquei sem alibi choveu lá fora
encostei-te a ti vítima á parede
mas não dei ao gatilho quando queria.
///////
Tenho um revolver na mão
um buraco no peito trespassando
o sonho e a imagem virtual
mas não morri ainda hoje é domingo
está por descobrir se o dia de descanso
é melhor do que outro para morrer à tarde
depois de ler o semanário
e no fim dos jogos de futebol...
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~~~~~~~~VINHO~~~~~~~
Não te importes com o cabelo desgrenhado,
Maria Providência,bebe o teu copo
E manda passear o taberneiro
Da rua Francisco Grandela...!
Cose-te pelas paredes na nesga do crepúsculo
Como maçã ainda verde rente à folha,
Chega-te ao balcão com o teu bigode,
Emborca o copo como corpo de igreja
Sem te importares com o marulhar da rua.
Os teus companheiros,debruçados da janela,
Não sabem mais que as palavras censórias
Que tu também vomitas sem consciência.
Amanhã, ou até logo quando a noite cerrar,
Quem sabe se descerão do parapeito
Baixando ao balcão das suas próprias cozinhas
Na escuridão do isolamento,
Matando o vício e a amargura
Que não consegues trancar em casa ?
Os burgueses,esses não te vêm,
Vivem do outro lado do mundo,
Mesmo quando passam por ti
E perguntam mecânicos se estás boa dos ossos...!
Tu estás óptima...! Tão óptima como eles...
Eles,que tu sabes bem,nunca viveram
A dura miséria dos teus bolsos...
Eles,que se banham em àgua limpa...
Eles,que não dão a mão...nem a ti,
Nem aos que riem da janela
A tua figura pictoricamente pura
Quando vais a caminho do colchão com pulgas.
Ri-te também dos corpos da burguesia,
Dos seus restaurantes e casas de saúde,
Dos seus acidentes,do seu colesterol,
Das obesidades perturbadoras
Do metabolismo cerebral,
Do rosbife e do preço da gasolina...!
Ri-te do meio das tuas acácias
Tão amarelas na primavera como sol,
Tão aromáticas como o grená
Do teu copo de vinho tinto...
Bebe,Maria Providência,
Bebe a toda esta forma de vida,
A todo o desconforto da viagem
E manda o taberneiro à merda,logo à saída da tasca...
Senta-te no rebate do passeio público
Ri-te de todo este cenário absurdo
Dos irmãos humanos...!
Ri-te do capital imundo
Que te atira com paladar sublimado
Ao copo do esquecimento
Na margem da sua caridade.
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TAVARES
Lembro-me do Tavares,o taberneiro,
Da patusca figura de barrigudo,
Das mesas de cimento,das cadeiras
De ferro,no fresco da parreirinha,
Do balcão cerimonioso e dum relógio
De pêndulo,com algarismos romanos,
Pesado como as peças de pano,acinzentadas,
E me faziam recordar artilharia e verde
Em Santo António do Cântaro.
Vestia um colete antigo de comerciante
Que bem podia ser de Santa Catarina,
Do qual saía,até ao bolso,
Uma linda corrente de relógio
E tinha o aspecto taciturno
Dum burguês falido.
A parreirinha conservava a mobília
Da moda do principio do século,
Onde senhora bem podia,em férias,
Sorver um cálice de Porto,
Mas era o que restava
Dos grandes armazéns de lã
Comidos pelo tempo
Onde alguns operários da ferrugem
Bebiam uns copos de vinho tinto,
Ao fundo do corredor,
Na sombra da parreirinha.
Até aqui atravessou a vida e ficou só,
Acomodou-se filosoficamente ao fim,
Gastou as palavras e os gestos,
Saturou sons,juizos,consciência,
Muniu-se de conclusões e resolveu partir
À procura da tranquilidade.
Vestiu o fato novo mais antigo,
Engravatou a camisa de preto,
Socorreu-se dum frasco de veneno
Guardado na companhia do bolso esquerdo,
Abriu um guarda chuva contra o sol
E incorporou-se no próprio funeral.
Algumas lágrimas lhe correram da face
Durante o abstrato vazio do desfile,
Mas silencioso,aprumado,rígido,
Seguiu-se religiosamente,
Buscando nos derradeiros passos,
Quem sabe,
As últimas razões mais os pedaços
Do tempo absoluto,hora que ceifa,
Minuto mais minuto,o ar incógnito...
Talvez tenha emborcado o frasco
Já perto do destino
E com ele,atirou à terra,
Quilos desconhecidos de matéria
E reflexões sem peso exacto.
No dia seguinte pela manhã
Foi encontrado à sombra do guarda chuva,
Encostado,hírtico,ao muro de fora
Do cemitério caiado.
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__________LINHA__________
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Calei-me ao telefone quando ouvi
a tua voz de lá dizer sou eu...
aguardei o silêncio aconteceu
não te pedir mais nada
e desligar...
lllllll
Pousei o telefone sobre a linha
onde cubro a nudez e o interior
não sem pensar pronunciar
amor...
mas nada ia mudar...
e desliguei.
lllllll
À volta a soletrar na escuridão
jorrando luz a lâmpada neon
a tela apagada dos meus olhos
a tua voz...
o som...
lllllll
Calou-se o telefone
na noite sem palavras
e não deixei de estar aonde estavas
nem onde estavas tu
ficaste só...
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____ ORLEÃS_________
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Parei em Orleãs para te beijar
mas tu não estavas lá nem tinha cais
por onde procurar
em Orleãs a ânsia de voltar
foi vento que passou e pouco mais
meti uma moeda na ranhura
presumi-me sobre recordações
segurei -te nas mãos e na procura
às portas de Orleãs busca insegura
não consegui escutar mais que ilusões...
lllllll
Parei em Orleãs para te olhar
num retrato que tinha na carteira
procurei -te na gare para pintar
um cenário que fosse de maneira
a esperar por ti mas não estiveste
senão em ecos e ondas de absurdo
telefonei dum telefone surdo
apanhei o comboio e prossegui...
lllllll
Parei em Orleãs tarde no meio
e não te vi passar foi a cidade
que te deixou fugir do meu país
para então vires comigo e da janela
acenarmos aos campos estendidos
do comboio veloz
fomos perdidos
fomos mercadoria sem bagagem
sem bilhete fizemos a viagem
e ninguém deu por nós...
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________MAUSER_____
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Tenho na minha mão a mauser que me deste
apontada para mim como no dia
em que deixei cair o protector de boca
numa ranhura surda do carrilhão menor
tenho na minha mão o dedo no gatilho
basta virar a arma e no meu peito
acertar sem temor e sem amor
abrir-se-há um buraco imperfeito
a desfazer a carne na sua circunferência
quero que essas flores que eu prometi levar
revertam para mim botões de rosa
brancos como esse sonho que agiganta
a insatisfação
não vou fazer uma revolta para me matar apenas
já nasci nesta pólvora de morte
sopro poeira espinho simples rombo
duma barca menor
custa-me agora adormecer no pó
que anda assentado nas tábuas do porão
agora que encontrei um astrolábio
hei-de dar um tiro em mim próprio
com a arma que me deste ?
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DIA DE FESTA
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Era dia de festa e tu fugiste mãe
fugiste a festejar não te agarrei
atado ao cais partido que serei
sem ter os teus ouvidos para escutar ?
lllllll
Era dia de festa mais além
subindo a serra que correste a pé
chamo por ti não ouves já não é
o tempo do teu tempo me falar.
lllllll
Foste fria gelada os teus cabelos
madeixas brancas nuvens de poeira
foram ponto final dessa ladeira
onde passaste a vão rios e mar.
lllll
Eras minha teus olhos era vê-los
a tecer-me as palavras mais ungidas
as imagens mais belas desmedidas
do gigante que eu era ao teu olhar.
lllllll
Fugiste neste dia nesta festa
e na rua fiquei despido nú
o lastro que me tinha eras tu
e não fiquei mais leve a navegar.
lllllll
Fugiste mãe fugiste foi-se embora
esse sorriso franco a alegria
que era peso e alívio do meu dia
e me ia regulando vida fora.
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MÃE
Tombou-se-te a cabeça por quê mãe
por que quebrou o fio que trazias
mal agarrado ao mundo tu sabias
tal qual como da noite o dia vem
lllllll
Por que partiste assim por que fixaste
o futuro depois para além de mim
quis dar-te a minha mão não seguraste
quis dizer-te que não disseste sim.
lllllll
Eras aroma sal e erva doce
que tinha o mundo em ti para expiar ?
gostavas de sorrir e de chorar
de te erguer da cadeira e acabou-se.
lllllll
Hoje chamo por ti já não responde
a tua nova forma e condição
deixaste-me ficar não sei por onde
à procura de nexo e razão.
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______________________CARTÃO
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Obrigada pelo teu cartão
Manuscrito...
Os teus anos, fazem o que sou.
Sempre que penso em ti
Penso amanhã...
Amanhã ?...
Arruma os livros e cadernos
E deita-te na cama
Que são horas...!
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CADEIRA
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Certa,certa
É a complexidade da cadeira.
Não tem pó,
Não tem rugas,
Mas arestas,espelhos,
Braços e uma broca.
Como seria a escada
Sem a tua mão
Na minha mão...?
Mesmo assim
É uma escada imensa
Que subimos depressa.
Ia com receio
Do teu receio,
Por que julgava
O que tu não sabias
Mas...
A rapidez surpreendeu-me
E como te portaste tão bem,
Nem um pastel de nata te comprei...
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_______BERENICE_____
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Michelle ma dit c’est une etoile
l’etoile de Berenice
ma fille et l’image pure
d’estabilité au ciel
a noite na rua escura
éo principio e fim deste silêncio
que me não deixa dormir
dou passos na gravilha nova
que me soam a mastigar
numa peneira de grão
eu que não tenho telefone à mão
para dizer ao céu
que me segure a estrada
e me diga se Berenice
me pode inscrever na recepção...
a luz sobre a porta principal
é a única velocidade á nossa volta
enquanto não me deixa dormir
a noite longa que se criou
ao acabar a tarde
são três da madrugada
nas margens do charante
le signe de Berenice
m’aporte les choses de bas
comme maladie du matin
je n’ai le moyen d’etre etoile
pour dire adieu
.
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---SETE HORAS------
______________________
Sete horas nos Remédios cai a noite
sobre os nossos sentidos estão em extase
enormes extensões de tanto querer
pelo escadório longo que há-de vir.
lllllll
As luzes da cidade abaixo cheia
de imagens espantadas refletem
a sombra de corpos abraçados
trinta anos depois de ali correr.
lllllll
Sete sons imortais assustadores
dissolvem-se pelos montes em redor
eu cinjo-te a cintura meu amor
e escuto as tuas sílabas do céu.
lllllll
Revistámos os cumes os buracos
onde lavar a fronte continuámos
com os olhos nos olhos navegando
em horas de maré num mar de vista.
lllllll
No alto dos Remédios na fachada
onde os deuses tem portas sobre pedras
ensaiámos as cenas mais tranquilas
na moldura da côr crepuscular.
lllllll
No alto da senhora demos mãos
jurámos ir até ao firmamento,
E tu que não fugiste agora corres
Para onde te vai o pensamento.
lllllll
Sete horas nos Remédios batem forte
numa das torres altas e depois
havemos de ficar mais separados
quanto mais um fizermos de nós dois.
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________________VERDES
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Verdes cumes
de acádias floridas
sinais do tempo não
dos trilhos dos pinheiros
ou das sombras
onde nos abraçamos
sem chegar e partir
já somos o limite de nós
em cada instante
de corpos enleados
na distância outonal
nem o vento parado
sobre o cume
mexe uma palha
porquê fugir
vendados e rendidos
pela clareira estreita
que precipita tudo
em dias ignorados
em sonhos de segunda
ou desejos inuteis...?
fugir em verdes troncos
de acácias e de cedros
fugir no pensamento
como se fosse um barco
uma estrada sem fim
que curva sempre ali
junto ao moinho velho
ou na sombra dum choupo
duma gasolineira.
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________DIAS___________
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Em cima dum colchão
entre o calor do quarto
e a penúria dos sonhos
estão dias de amanhã
frágeis como o vapor da água
que sobe do charante
para quebrar o ontem
enlameado nas raízes profundas
da corrente do verão
nas margens deste rio
que não é o mondego
nem o tejo
é certo que não vejo
as fontes e nascentes
mas corre na torrente
á minha frente
a secura dos barcos
e não mais
para lá dos limites
passeiam-se turistas
de mão em mão
transportando revistas
tirando fotografias
ao silêncio dos dias
á noite em turbilhão
e o rio arrasta consigo
a linha telefónica
impossivel abrigo
na distância
para quebrar a ânsia
que nos toca.